quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Miguel Portas


A manifestação foi ainda maior do que a anterior, que
já tinha sido gigantesca.
A pergunta, inteiramente legítima, à luz das declarações da ministra nos
telejornais, é muito simples: quantos mais terão que ser para que a senhora
oiça? Ou ouça, que dos dois modos se pode dizer e escrever.

*Cheguei a casa emocionado e comovido*

Aquele mar de professores está obviamente mais do que farto. Suspeito que o
estão por todas as pequenas razões de um quotidiano frustrante, e que por
isso se podem resumir numa curta frase: ser professor assim, não dá. Quando
mais de dois terços de uma classe sai à rua, é porque, apesar do desencanto,
ainda transporta dentro de si a energia da dignidade. Não é preciso ser-se
professor, psicólogo ou ministro para o entender. Mas existe uma professora
que é ministra e que nada entende de gente, que não percebe. Continua a não
perceber.

*Em casa, a comoção transformou-se em espanto quando ouvi Maria de Lurdes
Rodrigues*

Consigo compreender que, intimamente, ela esteja convicta da justeza do
sistema de avaliação. Consigo, porque quem lida com gente tem a obrigação de
saber ouvir nas palavras do outro, o que na realidade o motiva. Mas é
precisamente aí que Maria de Lurdes Rodrigues é um caso perdido. Ela tem da
escola, da avaliação e do próprio conflito uma visão intrinsecamente
administrativa. Todo o seu discurso é orgânico, robotizado: a avaliação
começou a ser negociada no verão de 2006, foi validada por um conselho
científico, se não funciona na perfeição, a responsabilidade é das escolas -
"está nas suas mãos tornar as coisas mais simples" - e tem de continuar
porque não há outro modelo disponível. Então está tudo bem, pergunta o
jornalista. Que quase que sim e que está a ser melhorada todos os dias e que
o pode continuar a ser nos próximos, desde que se concretize.

*Há, nesta cultura administrativa de poder, uma cegueira que raia o autismo*

Para a ministra, todas as escolas estão a avaliar, não tem notícia de que
alguma a tenha suspendido. *Então e a manifestação, sempre são 120 mil, não
é?*, insiste o jornalista. Pois que sim que são, mas que há nela uma
chantagem sobre os professores que querem fazer o seu trabalho. Ouve-se e é
dificil de acreditar. Se os que estão na rua são professores, onde é que
estarão os outros? "Chantagem", quando dois terços de uma classe sai à rua?
Porque não faz sentido, é preciso procurá-lo.

*Diz-me a experiência que posso ter a melhor ideia do mundo, mas que ela me
é inútil se quem tem que a concretizar não concorda*

Com Maria de Lurdes Rodrigues é diferente. Ela tem um mundo único, exclusivo
e intransmissível. Nele, o que leva os professores a sairem à rua é "o medo
ante a mudança". Tenho inveja desse mundo, confesso. No meu, que é normal e
feito de pessoas comuns, o medo costuma fechar as pessoas em casa. No mundo
da ministra, a manifestação foi uma cabala urdida pelos partidos da
oposição. Renovo a minha inveja. Naquele em que vivo habituei-me, pelo
contrário, a uma enorme desconfiança dos movimentos genuínos face aos
partidos. Sei, por experiência própria, que é preciso uma classe estar
rigorosamente nos limites da exasperação, para pedir ajuda aos políticos que
reconheça comprometidos com a sua luta. Pois foi isso que aconteceu desta
vez. Centenas, senão milhares de professores nos pediram - "Não nos deixem
cair", "não nos abandonem", "ajudem-nos".

Não, não foram os partidos que manipularam os sentimentos dos professores;
foram estes que exigiram da política o compromisso que não encontraram no
seu ministério.

*Estive nas duas manifestações*

Porque politicamente estou solidário com esta luta, mas também porque sou
pai de dois filhos que estudam na escola pública. Quero que eles gostem das
escolas que frequentam. Quero que aprendam, que estudem e que tenham
aproveitamento. Sei que têm professores melhores e piores, como estes sabem
que têm alunos mais interessantes e interessados e outros nem tanto. É assim
a vida, feita de encantos e desgostos. Gosto dela porque é assim, imperfeita
e por isso aperfeiçoável. Do que não gosto é de uma escola que, frustrando
os professores, não se pode encontrar com os alunos, que são a sua razão de
ser. Uma escola de professores desesperados e angustiados é uma escola que
morre dentro de muros. É por isso que a ministra até podia ter a melhor
avaliação deste mundo, mas não servir. A avaliação que urge não é a dos
professores, mas a de um ministério e de uma ministra que têm sido incapazes
de perceber o mal que estão a fazer às próprias escolas. Não preciso de
muita papelada nem de conselhos científicos para concluir que o problema
mora em cima.

Miguel Portas

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