sexta-feira, 14 de novembro de 2008

1000

E com isto já vamos em 1000 apontamentos, ou postais ou como se lhes quiser chamar. O tema, a propósito, será o do ensino, pelo que cedo agora a palavra a quem sabe mais que eu:
"Ensinar com seriedade é lidar no que existe de mais vital num ser humano. É procurar acesso ao âmago da integridade de uma criança ou de um adulto. Um Mestre invade e pode devastar de modo a purificar e a reconstruir. O mau ensino, a rotina pedagógica, esse tipo de instrução que, conscientemente ou não, é cínico nos seus objectivos puramente utilitários, é ruinosa. Arranca a esperança pela raiz. O mau ensino é, quase literalmente, criminoso e, metaforicamente, um pecado. Diminui o aluno, reduz a uma inanidade cinzenta a matéria apresentada. Derrama sobre a sensibilidade da criança ou do adulto o mais corrosivo dos ácidos, o tédio, o metano do ennui. Para milhões de pessoas, a matemática, a poesia, o pensamento lógico foram destruídos por um ensino inane, pela mediocridade, talvez subconscientemente vingativa, de pedagogos frustrados. As vinhetas de Molière são implacáveis.
Em termos estatísticos, o anti-ensino constitui praticamente a norma. Os bons professores - os que alimentam a chama nascente na alma do aluno - são talvez mais raros do que os músicos virtuosos ou os sábios. Entre os professores do ensino elementar, instrutores da mente e do corpo, são alarmantemente escassos os que têm plena consciência daquilo que está em jogo, do equilíbrio entre confiança e vulnerabilidade, da fusão orgânica entre responsabilidade e sensibilidade. Ovídio lembra-nos: 'Não há maior maravilha.' De facto, como bem sabemos, a maioria daqueles a quem entregamos os filhos nas escolas secundárias, a quem pedimos orientação e exemplo na academia, pouco mais são que amigáveis coveiros. Trabalham para reduzir os alunos ao seu próprio nível de fatigada indiferença. Não 'revelam' Delfos - obscurecem-no." -George Steiner, As Lições dos Mestres, Gradiva, 2005.

Não tem, necessariamente, razão em tudo. Steiner é um professor universitário, nunca terá lidado com jovens de subúrbios e novas oportunidades. Agora, é um facto que a maior parte dos professores carrega essa indiferença de que fala. Mas, por que razão seria diferente? Se a maior parte dos cidadãos carrega a indiferença, se os professores são cidadãos, logo...
É óbvio. Mas o mal mantém-se há muito. Na faculdade tive colegas que não sabiam o que era um livro bilingue. Tive colegas que achavam que "bilingue" era uma obra de Garcia Lorca que eu tinha na mão. Essa boa gente é hoje professora - a não ser que tenham mudado de ramo (e espero sinceramente que sim). Qual a solução para o problema? talvez engenharia genética ou o projecto de reconstrução do homem e da mulher novos - mas já vimos que não funcionam. Consequentemente, não há solução. Haverá sempre indiferença. Haverá sempre aqueles que autorizam os alunos a saírem das aulas para participarem em manifestações "espontâneas" - aliás, é sabido que toda a gente costuma trazer ovos no casaco, não vá dar-se o caso de ser necessária uma demonstração de "espontaneidade".
A solução também não passa pela glorificação e endeusamento de um ensino privado ao qual todos possam ter acesso, milagre sustentado por uma direitazinha incipiente de cariz pretensamente liberal, que leu uns livros em inglês e quer modernizar o país - até porque em muitos casos estudou lá fora. A essa gente talvez faça bem ler o mais recente livro de Steiner, no qual denuncia o fracasso dos sistemas de ensino anglo-saxónicos. Os europeus já os conhecemos.
O problema está na raiz, obviamente. Está nessa maravilha mundial chamada democracia, democratização, que abriu as portas da Academia a todos os que quisessem lá entrar. Mas nem todos deviam pôr lá os pés. Quem não era matemático não passava dos portões. Hoje, já não há portões, a não ser para fechar a cadeado quando alguns - nunca manipulados - decidem de forma absolutamente democrática (porque o governo manipula alunos quando lhes oferece Magalhães, mas o esquerdalho nunca o faz, nem quando põe os seus maltrapilhos das juventudes a fechar portões e a lançar ovos. Ou, simplesmente, a berrar insultos demonstrando um boçalidade inata, embora reforçada por certos exemplos que vêm de cima.)
A democratização do ensino ofereceu a possibilidade de todos estudarem ou fingirem que estudam. Ao mesmo tempo que abriu as portas a milhões de alunos obrigou ao recrutamento de milhares de professores, muitos deles com vocação zero. Há uma percentagem deles que é, de facto, muito boa. Talvez não seja necessariamente reconhecida como tal - a filiação partidária é uma coisa muito importante e os laços de família idem, apesar das mudanças sociais e fracturantes.
Quanto ao resto, por que razão hão-de todos aspirar ao (suposto) superior? A terra ainda é quem nos alimenta. E, um dia, acabaremos por voltar a ela.

FONTE

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